Equipamento Indisponível

Em 1981 eu estava desenvolvendo minha dissertação de mestrado no sistema de controle do míssil Roland, de cuja equipe eu fazia parte.  Decidi fazer uma malha de simulação para testar a validade do trabalho.  Era em um grande computador analógico EAI-580.  Naquela época não havia ainda disponível os recursos computacionais de hoje.  Tudo era analógico e deveria ser gravado através de registradores de papel.  Os sinais eram desenhados com uma espécie de pena de tinta mecânica.   Como era de se esperar, só conseguia registrar sinais lentos (no máximo 2 Hz).  Acontece que a frequência que eu precisava registrar era 13Hz. 

Fiquei sabendo que havia um registrador especial que marcava o papel de forma térmica e tinha a capacidade de registrar o que eu precisava.  Ficava no departamento de mecânica enquanto o EAI-580 ficava no departamento de eletrônica.  

Fui até laboratório onde se encontrava o tal equipamento e falei com o responsável.  Não lembro o seu nome, então vou chamá-lo de João.  João me atendeu muito solícito e eu lhe expliquei a minha necessidade.  Ele ficou muito contente e me disse que aquele equipamento havia sido comprado havia 9 anos e nunca tinha sido usado e eu seria o primeiro.  Ele ligava o equipamento quinzenalmente para ter certeza de que estava funcionando mas nunca havia sido, de fato, utilizado.

Fiquei igualmente contente e lhe perguntei onde estaria a cautela para assinar para que eu pudesse levar o equipamento para a sala onde ficava o EAI-580.  A sala ficava no mesmo andar, no mesmo corredor, a cerca de 20 metros da sala onde estava o registrador térmico.

João, para minha surpresa, me respondeu que eu não poderia tirar o equipamento daquela sala pois ele deveria estar à disposição dos alunos de pós-graduação da mecânica.  Eu repliquei que ele acabara de me dizer que havia 9 anos que o equipamento estava lá e ninguém o havia utilizado.  Então ele me saiu com a seguinte pérola: “quem garante que hoje não irá aparecer um aluno ?”   Pacientemente lhe expliquei que o EAI-580 era do tamanho de um pequeno guarda-roupa e não poderia ser removido.  Enquanto o registrador era portátil e poderia facilmente ser levado e trazido a hora que fosse necessário.

João foi irredutível e o registrador continuou sem uso pelos anos que se seguiram.

Mais uma vez, os procedimentos eram mais importantes que o objetivo.  Um equipamento caríssimo nunca foi usado pois seu guardião, muito zeloso, seguia à risca as regras que impediram que ele fosse usado.


Comentários

  1. Waldermar, quando eu cheguei no ITA em 1989 tinha um mini-computador parado há anos, com UNIX. Eu vi uma auxiliar de apoio a informática começando a mexer nele e fiquei curioso. Perguntei a ela se eu poderia dar uma olhada e ela deixou eu usar um pouco. Mal passou cinco minutos e o professor que era responsável pelo equipamento que há anos estava ali sem uso, questionou minha presença ali, me proibiu de usar, trancou a porta e não deixou mais ninguém usar. Poucos meses depois aquela auxiliar de informática me informara que o equipamento pifou e foi condenado ao lixo. O técnico dera o diagnóstico: FALTA de USO!

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    1. Por isso, na minha introdução no blog, eu afirmo que essa é a principal causa de não termos prêmios-nobel no Brasil. Gastamos nossa energia com coisas estúpidas ou sendo boicotados por idiotas

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    2. Concordo, uma das razões é essa. A principal é a falta de educação de alto nível para toda a população. É uma questão de curva gaussiana.

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  2. O comportamento desse técnico foi um misto de patrimonialismo, zelo torpe e quem sabe até uma certa soberba estúpida. Devia ser um fervoroso contribuinte de algum sindicato.

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  3. Tudo que li até o momento, parece bastante familiar, e a indignação está em curva ascendente. Ainda bem que esta capacidade não perdi e espero que nunca ocorra.
    Nos conte mais!

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  4. Fica a questão: quantos desses equipamentos comprados com recursos públicos e espalhados pelas diversas instituições públicas Brasil afora estão na mesma situação, guardados por tantos Joãos?

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    1. Reginato o caso descrito foi o meu primeiro. Ao longo da minha carreira, me deparei com dezenas de casos semelhantes. Alguns de equipamentos que custaram dezenas de milhares de dólares e nunca saíram da caixa.

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  5. Por essas é melhor pedir desculpas depois que autorização antes.

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    1. Se eu pudesse ter retirado sem ele ver, eu teria devolvido e ele nem perceberia. Infelizmente, isso não foi possível.

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  6. O pior é pensar que existem incontáveis casos semelhantes no Brasil. Fiz eletrotécnica e engenharia elétrica em uma instituição federal e lá apenas 1 única vez durante uma aula pude usar um osciloscópio. Minha sorte é que eu era aluno de iniciação científica e felizmente consegui me formar sabendo usar um osciloscópio, mas infelizmente muitos colegas meus não tiveram a mesma sorte. Além disso, em uma faculdade privada que dei aulas não consegui ministrar uma aula prática sequer porque tinha uma panelinha de professores que somente eles podiam usar os kits didáticos. Cansei de reclamar com a coordenadora, que apenas me falava pra eu entrar em contato com os tais professores. Resultado: me enrolaram e nunca consegui dar aula prática. Detalhe: os manuais e folhas de dados eram escondidas para garantir que nenhum outro professor pudesse aprender a usar os kits.

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  7. Nasci em 77, quando vi o primeiro PC foi no ensino médio naquele programa do governo em informatizar as escolas por fim atrasado, achei que a máquina fosse uma datilográfica com uma televisão embutida, me lembro dos cartões perfurados, o autocad rodava em 3 diskets.
    Eu também faço de tudo pra ver as coisas acontecerem, me desliguei do Exército e não tenho a mínima vontade em serviço público porque detesto burocracias bestas, foi dito na live, que o senhor não estudou tanto pra ficar perdendo tempo em discussões banais de pessoas que só atrasão a ciência, faço das suas palavras as minhas. Fui da manutenção eletrônica, vi perder vários rádios por falta de transistores que custão centavos, burocracia sem fundamento, mesmo como um simples técnico eu poderia doar os componentes, mas esse entrave me fez desistir de uma carreira promissora.

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