A.R. – Conhecimento Secreto

Nossa primeira tarefa foi visitar a empresa do Morozov chamada Bureau Sayut.  Lá discutiríamos a resposta às informações que haviam sido mandadas para ele alguns meses antes.  No meu caso tratava-se do projeto do sistema de controle do VLS – veículo lançador de satélites.

Nunca fiquei sabendo qual a especialidade do Morozov mas era com ele que eu deveria conversar.  Foi assim que comecei a entender como era o modus operandi deles.  Haviam diversos especialistas russos na sala de reunião e somente o chefe falava.  Os especialistas só se manifestavam quando solicitado pelo chefe.

Minhas primeiras palavras foram bastante polidas.  Eu disse que me sentia o aluno e eles os professores.  Embora parecesse bajulação era exatamente como eu me sentia.  Em seguida, expressei minha estranheza de que não havia nenhum comentário sobre o texto de guiamento que eu havia enviado.  Havia comentário sobre os outros aspectos do sistema de controle mas nada sobre o guiamento.

Morozov jogou o meu texto de guiamento sobre a mesa de forma ríspida (mais tarde percebi que isso era bem comum entre eles) e disse:  “não vou perder tempo comentando isso pois é totalmente acadêmico e não serve pra nada !”

Claro que fui surpreendido por tal grosseria.  Como não sabia o que dizer, fiquei calado e a reunião continuou. Alguns minutos depois, houve uma pausa para o café.  Morozov levantou-se e conduziu os visitantes para uma sala anexa.  Eu resolvi ficar e continuar lendo os documentos que haviam sido fornecidos.

Nesse momento, aconteceu um dos episódios mais marcantes da minha vida profissional.  Um velhinho, chamado Baskakov, um tanto desdentado e de cabeça bem branca venho até mim e fez sinal que queria me dizer alguma coisa.  O intérprete se aproximou (nenhum dos especialistas falava inglês) e fomos até uma lousa que havia na sala.

Lá ele escreveu um vetor e começou a explicar como eu devia pensar sobre o guiamento de um lançador.  Como eu já vinha trabalhando nisso há algum tempo, entendi imediatamente o que ele estava falando.  Era algo totalmente diferente do que estávamos fazendo.  Baskakov deu um sorriso largo ao olhar para meu rosto e perceber que eu havia entendido o que ele estava me explicando e falou: “é algo totalmente novo para você, não é ?”  Eu confirmei e agradeci muito. 

Acho que foram os minutos mais proveitosos de toda aquela viajem (talvez de todas) e trouxe um salto tecnológico enorme para o nosso programa espacial.  Ele havia transmitido um conhecimento secreto.  Não sei ao certo o porquê de sua atitude.  Talvez tivesse ficado com pena de mim por ter sido espinafrado pelo chefe dele.  Talvez ele odiasse o chefe.  Ou talvez, sentindo-se no fim da vida, ele queria passar o conhecimento adiante – atitude de um verdadeiro cientista.

Quando voltei ao Brasil, me reuni com minha equipe e repeti o que Morozov havia dito (mais uma vez ele tinha razão).  Que nossa abordagem era completamente equivocada e inútil.  A partir dali desenvolvemos o algoritmo que voou no VLS.

Depois disso publiquei diversos artigos internacionais explicando aquela estratégia ( “de graça recebestes, de graça dai”  Mt. 10:8).  Tenho as anotações feitas naquele dia, até hoje.

Comentários

  1. Situações como esta são o momento surpreendente pelo qual todo verdadeiro cientista vive. Transmitir conhecimento para os poucos de um seleto grupo identificadas por eles como potenciais transmissores da informação capazes de perpetuar soluções cientificas! E pelo que sei você é um.

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  2. Muito legal! Não é o mesmo caso mas lembrei do filme (Torn Curtain 1966)em que Paul Newman, era um cientista/espião americano puxando os conhecimentos do velho cientista na antiga Alemanha Oriental. Uma das atrizes era a bailarina Tamara Toumanova, (no filme é uma bailarina e também espiã soviética). Ela foi contemporânea de minha tia - Ruth Lima-, bailarina aposentada do Municipal/RJ, fazendo algumas apresentações juntas.

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  3. Um cientista de verdade tem dois problemas, primeiro ele não é bom em guardar segredos, compartilhar conhecimento é quase tão importante como respirar. Segundo, ele nunca mostra apenas as opções que podem gerar privilégios para ele, mas mostra todas as opções para aquela situação.

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