A.R. Ficando Azul

No primeiro dia foram nos buscar no mesmo carro da noite anterior e levados ao enorme prédio da Almaz bem em frente à estação do metrô chamada Sokol (falcão em russo).  Eu trajava um sobretudo de lã por cima do paletó do terno e mais pulôver camisa e camiseta – 5 camadas que pareciam não fazer muita diferença.  Não havia roupa no Brasil para sobreviver naquela temperatura. 

Logo que chegamos fomos recebidos pelo Sr. Lapin (que mais tarde se tornou diretor da Almaz).  Ele me olhou com um olhar investigativo e me apalpou o braço.  Balanço a cabeça e falou algumas palavras em russo (que começava com niet=não).  A intérprete traduziu: essa roupa não é adequada.  Eu já estava percebendo isso.

Foi-nos então trazidos casacos russos que mais pareciam uma armadura da idade média.  Eram grossos e pesados, nada bonitos, mas muito eficientes.  Eram um empréstimo para enfrentarmos um clima muitíssimo diferente do nosso.  Depois dessa primeira viagem ainda fiz mais 10 por conta desse contrato, sendo que 6 debaixo de neve.  Esse casaco estava sempre presente e já fazia parte do programa.

Havia, naturalmente, muita formalidade em tudo.  Assim que chegamos fomos apresentados ao diretor da Almaz, o Sr. Kirilov.  Um senhor bem idoso com cara de poucos amigos.  A sala dele, embora enorme, tinha poucos móveis: sua mesa de trabalho, uma grande mesa de reunião e um grande armário.

Me chamou imediatamente a atenção o fato de que a mesa de Kirilov era coberta de aparelhos telefônicos (uns 10), ainda do tipo de discagem (dial) e de várias cores.  Imaginei que era para que ele pudesse identificar com quem estava falando.  Não os ouvi tocar mas fiquei pensando que se tivessem o mesmo toque seria uma grande confusão saber qual deles.

Um desses aparelhos era vermelho.  Pensei logo: com quem será que esse telefone fala ?

O primeiro dia de trabalho foi bastante tranquilo, pois foi-nos fornecido alguns documentos para que pudéssemos estudá-los e então criticá-los.  Precisávamos entender o que estariam nos fornecendo para então escrever o anexo técnico com todos os detalhes.

Chegou a hora do almoço e o restaurante ficava no prédio ao lado.  Para chegar lá, andaríamos talvez não mais que cinquenta metros ao ar livre.  Então a intérprete, chamada Liza, me perguntou:  você vai sair assim, sem nenhum chapéu ?  Eu já estava usando o casaco russo e, achando que era suficiente, disse: ora é só até ali, não preciso de um chapéu.  Liza deu um sorriso enigmático, não falou nada e fomos caminhando.

Quando estávamos na entrada do prédio onde ficava o restaurante, Liza olhou para mim e disse:  você está ficando azul.  Apalpei o meu rosto e já não sentia nada.  Toquei minha orelha e percebia a existência dela como se pega um biscoito.  A impressão que tive é que se tentasse dobrá-la ela se quebraria em minhas mãos.  Meu rosto estava congelado.

Corri para o banheiro onde havia água quente e comecei a banhar a cara até que comecei a sentir que tinha rosto novamente.  Foi uma experiência aterrorizante.  Naquele mesmo dia comprei um chapka (típico chapéu russo) que se tornou meu companheiro obrigatório.

Além de enfrentar aquele frio intenso, os próximos dias foram ficando mais exaustivos pois não conseguíamos dormir devido ao fuso horário de 7 horas.  Eu e Contreiro ficávamos acordados estudando a documentação fornecida para prepararmos o texto do anexo.  A comida era estranha e éramos acompanhados desde que saímos do apartamento até retornar a ele.  Ninguém deveria saber que estávamos ali.

Olhando para trás e lembrando das dificuldades enfrentadas, concluo que só quem as vivenciou é que pode avaliar o esforço que foi feito para colocar o VLS na rampa de lançamento.  Volto a uma máxima já postada:

“As realizações dos homens tornam-se mais notáveis quando se leva em conta as limitações sob as quais trabalham” Thornton Wilder

 

Comentários

  1. Saber com qual roupa ir seria um problema a menos para nordestinos, pois aqui somos ensinados a perguntar qual roupa adequada, bem como a sugerir qual roupa o visitante deve usar.
    *É claro que sempre tem algum "corajoso" disposto a pegar pneumonia para mostrar que é forte.

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