A.R. Tentando Entender

Após o primeiro dia de trabalho na Almaz, precisávamos aprender a ir por nós mesmos de metrô.  Fomos acompanhados (na verdade escoltados) até a estação por um sujeito magrelo, com cara de poucos amigos.  Nosso intuito era primeiro passar na embaixada brasileira para nos apresentar e sabíamos qual estação ir.  Então me dirigi à bilheteria e fiz sinal de V com os dedos e disse “dvá” (2 em russo).  O tal “acompanhante” interferiu, com uma cara brava, fazendo um sinal de negação e disse “adin” (1 em russo).  Eu me virei pra ele e disse “dvá” e novamente fez um sinal de negação e repetiu “adin”!  Ele estava me dizendo que eu só precisava de uma passagem, porque estaria comprando duas ?

Fiquei tentando entender.  Será que ele não percebia que isso me economizaria de entrar na fila desnecessariamente ?  Será que ele julgava que fosse errado comprar mais do que o necessário ?

Independente da resposta, ia ficando claro pra mim que aquela sociedade vivia recebendo ordens que não poderiam questionar, desde o aspecto profissional até nos detalhes do dia a dia pessoal.

Em uma certa noite, logo após o trabalho, eu + Contreiro + Liza (a intérprete) saímos caminhando pelas ruas da cidade.  Estava muito, muito frio.  Quando passamos em frente a um grande e bem iluminado restaurante, decidimos entrar.  Havia, de fato, dois motivos: 1 que já estava na hora de jantar e 2 estava tanto frio que precisávamos entrar em um ambiente aquecido.

Fomos recebidos na porta por um sujeito enorme, vestido com uma roupa vermelha típica de recepcionista.  Falou algo em russo que a intérprete traduziu: vocês têm reserva ?  Respondi: diga a ele que não e queremos fazer agora.  Após a tradução, veio a tréplica: é preciso 24 horas de antecedência.  Olhei para dentro do restaurante (uma grande fachada de vidro) e não havia ninguém lá dentro.  Perguntei então:  tem alguma reserva para hoje ?  resposta: não!

Então, perguntei para Liza: se não há ninguém ocupando as mesas o que nos impede de ocupá-las ?  Liza me pegou pelo braço de forma um tanto ríspida e me arrastou para rua com impaciência.  Ela então explicou que ele estava cumprindo as regras – só poderia entrar quem tivesse feito reserva.  Como ninguém havia feito nenhuma, ele estava preparado para cumprir sua obrigação de ficar ali sem fazer nada e não queria que nós atrapalhássemos. 

Fiquei tentando entender mais uma vez.  Como poderia um restaurante permanecer aberto e o porteiro impedir que os eventuais clientes entrassem ?  Tal restaurante iria falir.  Até que o óbvio se impôs.  Tudo pertencia ao estado.  Ele teria seu salário (ainda que miserável) garantido, trabalhasse ou não.  Evidentemente, ele preferia não trabalhar.  O restaurante não precisaria dar lucro.  Todo o prejuízo (manter aquela enorme estrutura inútil) era coberto pelo estado.

Saímos dali e fomos comer em um restaurante de um grande hotel internacional.  O maître se aproximou perguntou de onde éramos (Liza respondeu) e ele se afastou.  Depois de algum tempo, perguntei para Liza onde estava ele com o cardápio, para que pudéssemos escolher.  Qual não foi minha surpresa ao escutar:  acho que ele já está preparando a comida para vocês.  Como assim ? perguntei eu.  Liza então explicou que ele escolhia a comida pela cara dos fregueses e esperava que gostassem. 

Eu já estava cansado daquelas insanidades e fiquei bravo dizendo:  chame-o aqui imediatamente.  Era só o que me faltava que até a comida que eu iria comer seria decidida pelos outros.  Parece que, para eles, era normal que decisões de suas vidas fossem tomadas por outrem.

O maître apareceu com uma cara nada satisfeita, com um cardápio nas mãos e anotou, com a maior má vontade, nossas escolhas.

Eu estava diante de uma sociedade que fazia tempo que não sabia bem o que era fazer escolhas.  Talvez estivessem vivendo a máxima “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.  Eu corrigiria juízo por medo.

“O único poder que realmente temos é o de nossas decisões/escolhas”.

 

Comentários

  1. Waldemar, obrigado pela visão (mais uma) clara e precisa do que é o comunismo: o cultivo da insanidade.

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  2. Vi um filme Alemão, da década de 80 de uma banda de rock da Alemanha Ocidental que faz uma excursão para a Alemanha Oriental, mais para o fim do filme eles vão comprar algo em um guichê. A sra. mal-encarada, para variar, disse que precisavam adquirir outra coisa no outro guichê. A banda vai para o outro guichê e dá de cara com a mesma sra. mal-encarada. Eles ficam olhando, sem entender, para a cara dela e ela responde gritando: "- o que foi?".
    Eles, sem graça dizem, o que querem e ela atende com aquela boa vontade comunista.

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  3. Esta última frase é incrivelmente importante, o único problema é que os bons desistem antes dos maus.

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