TODO MUNDO

 No início de 1999, o curso de engenharia em Automação e Controle da Universidade Braz Cubas, estava indo de vento em popa.  O coordenador do curso, Prof. Pio Torre (já falecido) procurou-me e pediu se eu poderia preparar uma proposta de laboratório para aquele curso.  Me senti lisonjeado e aceitei prontamente.  Ele me pediu que eu estipulasse o número de horas que eu tivesse gasto para fazer o trabalho e ele me pagaria em função disso.

Comecei imediatamente a procurar na internet (já havia naquela época ainda que incipiente) que tipo de equipamentos poderiam ser adquiridos com a finalidade de montar um laboratório didático para automação e controle de processos.

Encontrei uma empresa em Curitiba e liguei para lá.  Conversei com um vendedor que me passou as informações desejadas incluindo os valores.  Então eu o solicitei que preparasse uma proposta formal em nome da Universidade Braz Cubas mas que o endereço do envelope deveria ser a minha casa, pois eu estava juntando os orçamentos.

Fui, então, surpreendido com a pergunta: “qual o valor que eu coloco na proposta ?”  Como assim ?  repliquei eu.  “O valor que você acaba de me passar!”  “E a sua participação?” continuou ele.  Me sentindo um tanto ofendido eu lhe disse: “amigo, já estou sendo pago para fazer isso.  Não há nenhuma outra participação.  Ponha no orçamento o valor verdadeiro”.

Na semana seguinte, recebi 2 moças de uma empresa de São Paulo, de kits didáticos, com um catálogo enorme.  Gastei mais de uma hora escolhendo diversos kits para o futuro laboratório.  Ao terminar a escolha voltei-me para elas e disse: “vamos agora falar de valores”.  Elas se entre-olharam de uma maneira diferente e eu, baseado na conversa da semana anterior, entendi perfeitamente.  Então eu contei para elas o que havia acontecido com a empresa de Curitiba e as tranquilizei que não queria nenhuma “participação”.

Foi quando ouvi a pior frase de toda minha vida profissional: “professor, todo mundo faz isso!”  Ainda tentei mitigar o problema questionando: “todo mundo quem ?  os funcionários públicos ?”  A resposta foi: “não!  Todo mundo, TODO MUNDO!!!”  Acho que devo ter empalidecido e ainda consegui dizer: “pois eu não sou todo mundo!  Coloque o valor verdadeiro dos kits no orçamento”.

Na semana posterior, após ter recebido todos os orçamentos, preparei um dossiê e coloquei nas mão do Prof. Pio.  Ele olhou e disse: “excelente, vou encaminhar do jeito que está para o setor de compras”.

Eu havia dado por encerrado o episódio, quando recebi um telefonema de São Paulo.  Era uma das moças que haviam me visitado.  Ele estava indignada e falou:  “o senhor não disse que não haveriam nenhuma comissão para aquela venda ?”  Eu respondi: “isso mesmo.  Encaminhei o orçamento original de vocês para o meu chefe.”  Ao que ela replicou: “pois a pessoa de compras da Universidade está exigindo comissão para fazer a compra!!”  Nessa hora quem explodiu fui eu:  “então chame a polícia para esse cretino!  Ele está fazendo isso eu seu próprio nome e não em nome da Universidade.” Desliguei e imediatamente comuniquei ao Prof. Pio o que estava acontecendo.

Parecia que a situação ficava cada vez pior.  Não bastasse as pessoas que buscam orçamentos pedirem comissão indevida mas até o pessoal administrativo de compras querer levar algum também.  Fiquei tão consternado que resolvi me afastar totalmente do processo e demorei quase 20 anos para me envolver com esse tipo de atividade.

Até hoje essa expressão me assombra :  todo mundo faz isso !  Não é porque todo mundo esteja fazendo algo que faz com que esse algo esteja certo.  Também, não é porque ninguém está fazendo algo que esse algo está errado.

Me recuso a imaginar que nossa sociedade inteira esteja completamente entregue à iniquidade.  Prefiro acreditar que, nos mesmos moldes do tempo do profeta Elias (livro de 1 Reis capítulo 19 v.18), ainda existem milhares de joelhos que não se dobraram à baal.  Sou um deles e creio ser desse remanescente que reconstruiremos uma sociedade justa e abençoada.

Comentários

  1. Certa vez em uma escola que eu já não dava mais aula, mas era amigo dos funcionários, vi um caminhão descarregando vários instrumentos de eletrônica. Na semana seguinte fui falar todo animado com um dos funcionários, ele disse que já tinha ido tudo embora pois o MEC já tinha feito a inspeção. Depois descobri que é uma prática comum montar laboratórios fantasmas para o MEC. Depois fiquei sabendo que uma vez começaram a desmontar enquanto os fiscais ainda estavam no prédio.

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