QUERO O MEU
Em 1983, meu primeiro filho tinha alguns meses de idade e, devido ao baixíssimo salário, eu precisava ir na xepa da feira aos sábados para conseguir comprar laranja lima para fazer seu suquinho. Não me envergonho disso. Na verdade, tenho até um certo orgulho de dizer isso. Foi um tempo muito difícil financeiramente, mas em nenhum momento me fiz de vítima. Vivi uma vida frugal e trabalhei duro. Nessa época, consegui uma oportunidade de dar aulas à noite na Universidade Gama Filho, situada num bairro (Piedade) não muito distante da minha casa.
Na primeira vez que fui
dar aulas, fui de carro, para conhecer o ambiente. A Gama Filho ficava no topo da subida de uma rua
que era utilizada como estacionamento pelos alunos. Como era de se esperar, havia uma legião de
guardadores de carro que esperavam receber algum dinheiro para “olharem” os
carros. Isso não impedia que houvesse
frequentes furtos de veículos naquela rua. Na situação econômica que eu vivia, perder meu
carro velho seria uma catástrofe. Assim,
eu estava muito preocupado.
Ao retornar para buscar
o carro, vim conversando com um aluno que havia estacionado seu carro ao lado
do meu. Quando lá chegamos ele percebeu
que seu carro havia sido furtado. Ele
voltou correndo para o prédio da Universidade, não sei exatamente fazer o quê. Fiquei bastante consternado, mas sem saber o
que fazer fui embora.
Na aula seguinte, o
aluno veio me contar um fato curioso que aconteceu naquele momento. Ele estava subindo a rampa para pedir carona de
um amigo para irem juntos buscar ajuda policial. Quando encontrou o “guardador” que estava
visivelmente bêbado. Ele ia caminhando
rápido quando o tal guardador lhe gritou:
“ei cadê o meu dinheiro ?” Ao que
o aluno respondeu: “que dinheiro ?
roubaram meu carro !!!”. O
guardador incontinente, replicou: “não quero saber. Quero o meu !”
O episódio me trouxe muitas
lições. Como poderia alguém exigir
pagamento de um serviço que não prestara ?
A frase do “guardador” mostra que ele não se importava com o que
acontecia, apenas queria o dele. Estava
ali, fingindo executar uma tarefa, apenas aproveitando a oportunidade para
ganhar uns trocados dos que se viam ameaçados se não o fizesse (havia notícias
de pessoas que tiveram seus carros danificados por se negarem a pagar).
Os furtos eram tão
comuns que seria impossível que os “guardadores” não soubessem de quem se
tratava. Se havia tão grande número de
ocorrências, onde estava o poder público que não colocava uma ronda permanente
no período de aulas ? Porque a
universidade não cobrava o reforço policial ?
Escondia-se no argumento de não ser responsável pelo que acontecia fora
de seus muros ? Os comerciantes locais
não viam o que aconteciam diante de seus estabelecimentos ? Havia claramente uma simbiose criminosa
acontecendo ali.
Evidentemente, nunca
mais voltei de carro para dar aulas, mesmo com o sacrifício de ter de chegar em
casa muito tarde da noite, indo de ônibus.
Hoje ficou pensando como tais coisas podiam acontecer e ainda continuam
acontecendo ? A tal simbiose criminosa
não acontece da noite para o dia. É um
processo que se estabelece paulatinamente devido à omissão e até cumplicidade
das pessoas em torno da situação.
Me lembro de uma
ilustração que li décadas atrás. O cicerone
de um zoológico, ao passar em frente ao local onde haviam ursos em uma pequena
ilha com um cordeiro nela, ouviu de um visitante: “olhem que excelente exemplo
de coexistência pacífica!” Ao que o
cicerone replicou: “pena que essa coexistência pacífica só dura até o urso ter
fome.”
Não pode haver
coexistência pacífica com o mal. Eu algum
momento o mal irá atingi-lo e devorá-lo. A frase
hipócrita do guardador, de que só interessava ganhar o dele, fazia com que ele fosse parte
do problema, jamais da solução.
O que me preocupa não é
o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. Matin
Luther King
Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o
bem. Romanos 12:21
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