MENTIRA DO BEM

 Alguns anos atrás, minha empresa, juntamente com outra da área espacial, nos candidatamos a uma encomenda tecnológica (uma modalidade alternativa para licitação) em uma organização governamental. 

Devíamos apresentar um projeto de engenharia para um equipamento bastante especializado.  Fizemos um trabalho bastante sério e detalhado, tanto do ponto de vista técnico como do ponto de vista orçamentário.

Aconteceu, então, uma reunião através de vídeo conferência para discutir nossa proposta.  Essa reunião era com um dos diretores da tal organização.  Ele elogiou bastante nossa proposta, mas fez uma ressalva muito estranha.  Ele solicitou que modificássemos nossa proposta pois havia um item que “os procuradores” poderiam não gostar - que era gestão do projeto.  Como já não bastasse o comentário absurdo, o diretor sugeriu explicitamente que retirássemos o item e distribuíssemos seu valor por outros itens.

Argumentamos que gestão de um projeto de pesquisa é fundamental e seu custo não é desprezível.  Também dissemos que não iríamos transferir os valores para outros itens (pois seria uma mentira) e preferimos simplesmente remover a atividade, transferindo-a para o desenvolvimento (se fosse contratado).

O primeiro absurdo dessa conversa foi o argumento de que “os procuradores” (que não sei a quem ele se referia) poderiam não gostar da atividade “gestão do projeto”.  Não sei se isso era apenas uma desculpa para esconder sua própria opinião.  O fato é que procuradores (formados em direito) não deveriam opinar em atividades de engenharia.  Assim como eu engenheiro não daria palpite em um procedimento cirúrgico (assunto para médicos).  Já seria uma invasão de competência. 

A questão maior veio depois.  Ele nos pedir para modificar a proposta “rearranjando” o orçamento.  Em outras palavras, nos pediu para mentir.  Dizem que se a intenção / objetivo é boa (ou bom), então não seria problema mentir - chamada mentira do bem. 

Pode uma mentira não ser do mal?  Existe mesmo uma mentira do bem?  Quando se ensina uma criança, em tenra idade, que não se deve mentir, acrescenta-se que se mentir com uma boa intenção, então está tudo bem ?  É possível se chegar à verdade através de mentiras ?

Normalmente, mente-se para evitar alguma punição / constrangimento ou para usufruir alguma vantagem que não viria se falássemos a verdade.  Essa segunda parte, que seria uma “mentira do bem”, na verdade se chama enganação ou trapaça.

O episódio descrito me incomoda até hoje pois creio que aquele diretor tinha boas intenções para conosco.  Parece que para ele seria normal contar uma mentirinha desde que ajudasse a ter sucesso em alguma demanda.  Estamos tão acostumados à exposição de mentiras (hoje temos nomes mais sofisticados: narrativa e fake-news) que começamos a validar tal atitude. 

Li recentemente um comentário sobre esse assunto que pode ser bastante esclarecedor.  Faz algum tempo em que a idéia de que tudo é relativo (jocosamente evoca-se Einsten e sua teoria da relatividade) fixa na mente das pessoas de que não existe verdade absoluta.  “Cada um tem a sua verdade” dizem.  Ora, se não existe verdade, então também não existe mentira.

Abriu-se a caixa de pandora ao criar-se as narrativas.  Uma história inventada, baseada em fatos ou não, construída para atingir um objetivo, sem compromisso com a verdade (já que ela não existe).  É dentro desse contexto que surge o conceito de mentira do bem. 

De minha parte creio na verdade factual e na verdade transcendental.  Quem vive na mentira colherá os seus frutos, mesmo que momentaneamente pareçam doces, seu veneno um dia surtirá efeito.

Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem, mal; que fazem da escuridade luz e da luz, escuridade; põem o amargo por doce e o doce, por amargo!   Isaías 5:20

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