O PERIGOSO

 Quando comecei a dar aulas na Universidade Braz Cubas em 1994, conheci o professor Pio Torre Flores (hoje falecido).  Tomávamos o mesmo ônibus que levava os professores para a universidade que ficava em Mogi das Cruzes.  Foi nessa época em que ele relatou um fato pitoresco ocorrido por ocasião de sua chegada ao Brasil.

Pio era de origem peruana e havia estudado na Alemanha.  Não sei se devido à cultura peruana ou alemã ou mesmo à sua personalidade, Pio era um homem muito sisudo.  Sua fala dura beirava à truculência, às vezes.  O mais marcante era seu sotaque “portunhol”.  Mesmo depois de muitos anos morando no Brasil, ainda trazia um forte sotaque castelhano. 

Assim, quando ele chegou ao Brasil na década de 80, o sotaque era ainda mais acentuado e aí é que ocorreu o episódio em questão.  Naquela época, o aeroporto principal de entrada do país era no Rio de Janeiro.  Ele chegou com a família já à noite e alugou um carro para vir para São José dos Campos. 

Como ele não conhecia nada da estrada e não havia Google maps nem Waze naquela época, ele acabou entrando em Belford Roxo.  Naquele tempo Belford Roxo era conhecida por sua periculosidade, mas Pio nada sabia sobre isso. 

Estava escuro e ele parou em um estabelecimento iluminado onde havia muitas pessoas.  Era um bar.  Pio desceu imponente dirigiu-se ao atendente e falou usando o pouco português que sabia : dá-me leite!  O atendente, meio assustado com a audácia do recém chegado, respondeu: não servimos leite aqui.  Pio retrucou impaciente: necessito leite para mi hija!  O atendente um tanto trêmulo, replicou: vou providenciar.  E sumiu.

A essas alturas o bar já estava em um silêncio misterioso com pessoas cochichando e alguns se retirando de fininho.  Logo o atendente voltou com um frasco de leite, sabe-se lá de onde e lhe entregou.  Pio agradeceu, solicitou orientação para retomar sua viagem e se foi.

Pio nos contou essa história rindo muito.  Ao comentar aquele momento Pio nos disse que teve a melhor impressão possível do Brasil.  Que povo atencioso e hospitaleiro, pensou ele.  O que ele não sabia é que, naquele tempo, Pablo Escobar e o Cartel de Medelin estavam na mídia com frequência.  Se falava abertamente das ligações com os traficantes brasileiros.  As pessoas daquele lugar pensaram que Pio seria um emissário do Cartel que estava ali para negociar com os traficantes locais.  Ficaram apavorados!  Queriam que ele fosse embora dali o mais rápido possível.  Em vez dele estar em perigo, ele era o perigo.

Esse episódio traz algumas reflexões interessantes.  Como a percepção do que está acontecendo ao redor pode mudar completamente as circunstâncias.  Se Pio soubesse que estava num lugar perigoso, cheio de bandidos, provavelmente se retrairia e teria uma postura insegura, demonstrando medo.  Provavelmente seria alvo de algum assaltante.  Porém como se mostrou confiante e até mesmo atrevido  acabou por impor mais do que respeito.  Impôs medo. 

Isso me faz lembrar um quadrinho motivacional em que aparece Davi, com a funda na mão, de frente do gigante Golias.  Na primeira parte, o pequenino Davi olha para o gigante e pensa: ele é muito grande não pode ser vencido.  Na segunda parte, com a mesma figura, Davi pensa: ele é muito grande, não tem como errar.  Dependendo da postura: quem está em perigo e quem é o perigoso ?

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