JURISPRUDÊNCIA DA MENTIRA
Em meados da década de
90 fui convocado como testemunha em um processo administrativo disciplinar de um
determinado funcionário. O caso em si
era de pouca importância, mas o que aconteceu na audiência me foi marcante.
Ao chegar na sala onde
seria a tal audiência, fui convidado a me sentar de frente ao advogado responsável
pelo processo disciplinar, que chamarei de Aruíres. Mas adiante estava o réu que a tudo assistiu
sem se manifestar. Em suas primeiras palavras, Aruíres se dirigiu a mim dizendo: “muito embora isso não seja uma audiência
formal o senhor fique ciente de que é obrigado a falar a verdade”.
Eu já estava acostumado
com filmes americanos em que, durante uma audiência em um tribunal, todos os que
se sentam naquela cadeira juram dizer a verdade, toda a verdade, somente a
verdade e nada mais que a verdade.
Portanto, achei muito estranho que Aruíres tivesse se dirigido somente a
mim com aquelas palavras e imediatamente respondi: “como todos nós, não é doutor
?”
Aruíres, então, usando do
seu “advoquês” começou a seguinte frase: “o senhor é obrigado a falar a verdade
já o réu é facultado...” Eu o interrompi,
antes que terminasse a frase, dizendo: “Pode
parar! Eu conheço a lei. Ter o direito
de não se incriminar (produzir provas contra si mesmo) não é a mesma coisa que
mentir. Ninguém tem o direito de mentir
!”
Aruíres mostrou-se
bastante contrariado quando disse: “não vamos entrar nessa polêmica”. Percebendo que não estava falando com alguém
que pudesse intimidar, ele deu continuidade às perguntas que eu deveria
responder. Durante esse procedimento de
perguntas e respostas, percebi claramente a parcialidade de Aruíres a favor do
réu. Como normalmente acontecia, o
processo disciplinar não deu em nada.
A partir desse episódio
comecei a perceber quantas “verdades” sobre o que é ilícito ou ilegal, o que
pode e o que não pode, se conta por aí. Todas
as vezes que me deparava com determinações absurdas eu perguntava: “onde está isso escrito ?” Via de regra, me mandavam ficar quieto pois
aquilo era uma “verdade” óbvia e inquestionável. Mas nunca me mostravam onde estava escrito. Isso porque, na verdade, não estava escrito
em lugar algum. Era simplesmente a
interpretação (às vezes nem isso) de alguma regra ou legislação. Normalmente, feita por uma questão de conveniência
daqueles que a produziram. Passei a
chamar isso de jurisprudência da mentira.
Dentro do serviço público
há muita jurisprudência da mentira. Assume-se
que alguma interpretação (normalmente pessoal) da lei é a verdade (muitas vezes
contrária ao próprio princípio da lei).
Passa-se a mencionar isso com frequência até que todos começam a
acreditar que aquilo é a verdade. Me faz
lembrar uma máxima do ministro da propaganda nazista que dizia que você deve
repetir uma mentira até que ela se torne verdade.
Recentemente, eu uma
conversa com o diretor de uma grande instituição de pesquisa, tive a
oportunidade de ver o quanto a jurisprudência da mentira prejudica o desenvolvimento
tecnológico do país. Ele me contou sobre
as dificuldades de conseguir realizar uma pesquisa sem incidir em alguma
ilegalidade. Eu lhe perguntei onde
estava escrito que aquela atitude era ilegal.
Ele me respondeu que havia lido todos os documentos e os apontamentos
estavam lá. Perguntei o que seriam esses
apontamentos? Onde estava a lei em que
se baseavam ? Não soube dizer. Muito provavelmente mais jurisprudência da
mentira.
As pessoas mentem por
vários motivos: mentem para engar outrem
e tirar vantagem disso; mentem para não serem envergonhadas por alguma atitude
que teriam tomado; mentem por diversão e também mentem para se defender. É nesse último motivo que pessoas com Aruíres
entendem que um réu tem do direito de mentir.
É perfeitamente entendível a atitude de mentir para se defender. Entretanto, isso não faz da mentira um
direito. A mentira já era condenada há
milênios através do nono mandamento “não dirás falso testemunho”. Mas a jurisprudência da mentira a transformou
em verdade aceitável.
A verdade dói, a dúvida corrói e a mentira destrói.
Porque nada podemos contra a verdade, senão em favor da própria verdade. 2Corintios 13:8
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